25. TUDO PASSA

     Séculos atrás, desde que fora promovido e abandonara as ruas para se tornar o responsável por anotar e arquivar a rotina dos anjos da guarda, Checarion assimilou com o tempo um novo hábito pertinente à sua nova função: checava, rechecava e checava novamente todas as suas ações.
     Foi o que fez com o caso de Caliel.
    Mesmo com a sentença do anjo da guarda já definida e aplicada, algo incomodava Checarion. Não sabia bem o quê; uma pulga atrás da orelha, que também morde os mais elevados seres. Um dia, depois do longo expediente de bater e rebater carimbos sobre infindáveis relatórios, o arcanjo retirou dos arquivos a papelada sobre Caliel.
     -- Após revisar várias vezes o caso, ficou claro para mim que eu havia cometido um erro. Um inocente não poderia ser punido por causa de minha interpretação equivocada – explicou Checarion, em alto e bom som, a Margô, Zé, Baldo, Rimo, o Diabo e toda população do Inferno.
     Ele continuou com a palavra.
     -- Obviamente, Caliel infringiu a Lei 555/88, uma das mais importantes a regular a conduta dos anjos da guarda. Porém, não se pode analisar os fatos somente pela palavra crua da lei...
     Lúcifer interrompeu.
     -- Você não é advogado, promotor ou juiz! Que baboseira é esta que está falando?
     -- Tens razão. Não sou nada disso. Porém, sou justo. E a Justiça está acima da Lei.
     Checarion avançou mais um bocado e parou frente a frente ao Capetão.
     -- Além disso, descobri que o relatório de Caliel havia sido adulterado!
     -- Como assim? – quis saber Margô.
     -- Que relatório? – questionou Zé.
     -- Pare de falar asneiras, infeliz! – gritou Lúcifer.
     O arcanjo revisor voltou a falar, mesmo assim.
     -- Respeita os asnos, Anjo Decaído. Estes seres esforçados não merecem ser diminuídos pelo veneno de tua língua. Em resposta à pergunta do simpático rapaz de bigode, apresento-lhes um trecho que havia sido removido do relatório do anjo da guarda.
     No mesmo instante, Checarion desenrolou um longo pergaminho, escrito de cima a baixo com as belas e humanamente ininteligíveis letras do alfabeto do Éden. Aos poucos, no entanto, as palavras ganharam vida, saltaram do tecido e começaram a rodopiar no ar, combinando-se umas as outras. Ao ponto de se tornarem outra coisa: a holografia de Caliel.
     O avatar do anjo da guarda pôs-se a falar.
     -- Sábios senhores, anjos e arcanjos superiores. Fui o primeiro anjo da guarda a violar a Lei 555/88, que nos impede de tocar em território infernal. Tenho ciência da indisciplina de meu ato e sei que serei punido com rigor por tal. Ainda assim, eu não poderia agir diferente. Quando nosso Pai Superior nos criou, incutiu na natureza de cada anjo da guarda o amor incondicional pelos humanos e a necessidade do cumprimento do dever de protegê-los, sob qualquer circunstância, não importa a ameaça. Desta forma, foi inevitável a mim descer ao Inferno e tentar o resgate da alma de meu protegido. Não consegui. Os poderes de Lúcifer e seus asseclas eram muito superiores aos meus. Porém, fiz minha parte e cumpri meu dever. Peço perdão pela indisciplina e pelo fracasso.
     A holografia, de repente, desapareceu, as letras se separaram mais uma vez e retornaram ao pergaminho. Lúcifer puxou a palavra para si.
    -- Este idiota acaba de confessar o próprio crime! Hahahaha! Ele não merecia simplesmente ter sido banido. Era para ele ter sido mandado aqui para nós! Como dizem os humanos nojentos: de boas intenções, o Inferno está cheio. Hahahaha! Detesto imbecis, iria preparar uma sessão de tortura especial para ele.
    -- Cala-te – ordenou Checarion – A Assembleia Celestial acatou parecer dos sábios e juristas do Paraíso e decidiu por extinguir a Lei 555/88. Assim, Caliel está autorizado a retornar ao nosso convívio e retomar suas funções.
     Margô encheu os olhos de lágrimas. Baldo bateu palmas de felicidade. Rimo sacudiu as penas da cauda, demonstrando sua alegria, e mesmo Zé esboçou um ligeiro sorriso por baixo do bigode.
     -- Vocês estão loucos!!!??? – berrou mais uma vez o Mestre do Mal – Este Caliel é um irresponsável! Um desobediente! Um fanfarrão! Um baderneiro! Um desertor! Um traidor! Como vocês podem perdoá-lo?
    -- Quem és tu para nomear os outros como traidor? – questionou calmamente Checarion – Não há perdão a quem sequer errou. Não é necessário. Em verdade, Caliel revelou que equivocados estávamos todos nós.
     -- Como assim??? – afobou-se Lúcifer.
     -- Nenhuma lei pode estar acima da maior de todas as leis.
     -- E que diabo de lei é essa??? – perguntou o Capetão.
     Checarion fechou os olhos e respondeu.
     -- A Lei da Natureza.
     Todos ficaram atônitos. Depois de uma ligeira pausa, o arcanjo retomou a argumentação.
    -- Não poderíamos punir Caliel por ele ser exatamente aquilo que fora feito para ser. Fazer isso seria caminhar em sentido contrário à vontade divina.
     -- Mas, eu fui punido! Nós todos do Inferno fomos!!! Chama isso de Justiça??? – gritou um amargurado Lúcifer.
     -- Tu não nasceste mal. Tu escolheste o mal.
     O Chefão do Inferno finalmente ficou mudo.
    -- Agora, por favor, entregue a garrafa com a alma de Rui Rico à distinta senhora ruiva, para que possamos ir embora – mandou Checarion.
      Sem escolhas, Lúcifer cumpriu a ordem e esticou o receptáculo às mãos de Margô.
     Contudo, instantes antes de ela apanhar a garrafa, algo muito veloz avançou sobre a doutora e tomou o objeto para si.
       -- Esta alma é minha! – disse um sujeito de capuz negro, pele muito branca e barba muito preta -- com os dentes todos à mostra.

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