14. O RIO DENTRO DA XÍCARA


     Sorondo cuidava da louça e lavava uma xícara quando teve uma de suas visões. Na superfície d'água acumulada no bojo do objeto, viu Baldo emergindo no meio de um rio extenso e imundo. Inconsciente. 
     Tal situação ocorria de fato naquele instante. Depois de afundar de repente nas águas sujas do esgoto, sem que pudesse evitar ou ser acudido por Margô, Zé e Rimo, Baldo na verdade descobriu um atalho, uma tubulação escondida que ligava diretamente o mundo da superfície ao das profundezas. 
     Sem escolha, nosso amigo azul tapou a respiração e se deixou levar. Era como descer em um escorregador todo fechado – e completamente cheio d'água. Ou melhor, esgoto. Não era divertido como o tobogã de um parque aquático.
     Mesmo se quisesse, Baldo não conseguia manter os olhos abertos. A descida era muito rápida, sensação parecida a de pilotar uma moto ninja a toda velocidade, sem capacete e viseira. Em vez do ar direto na cara, entretanto, o que Baldo sentia trombando em sua testa e nas bochechas eram os dejetos típicos de qualquer esgoto. Era difícil mesmo deixar a boca fechada. Por bem, ele conseguiu. Pelo menos até o momento em que se manteve consciente.
     Baldo já estava apagado quando foi cuspido da tubulação. O cano terminava no barranco do grande rio avistado por Sorondo, metros acima do espelho d'água. Nem o impacto do corpo na superfície foi suficiente para acordá-lo. Baldo afundou um tanto, mas logo em seguida voltou a subir, desenhando no fundo do rio uma curva formada de borbulhas.
     Na cozinha do laboratório, a xícara escorregou das mãos trêmulas de Sorondo, espatifando-se no chão.
     - Meu Deus! Acuda meu amigo! - disse alto o mordomo, sentindo o coração murchar de tanta agonia.

*** 

     Sorondo não pode ver, mas seu pedido em parte surtiu efeito. Dedos grossos, de unhas compridas e lascadas, agarraram Baldo pelo colarinho, levantando-o das águas. Não eram, no entanto, as mãos de Deus.

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